segunda-feira, 14 de maio de 2012

Conto

Tomado de tamanha excitação Zé Gato encostou a amada à parede “Ah José, agarra-te que vêm aí as curvas!”. Em momentos solenes usava o nome José, era mais finório. Zé Gato era o seu nome de menino quando agilmente corria pelas ruas e levava recados de porta em porta para arrecadar uns trocos e o fazia sentir-se homem.  Mas o que ele gostava mesmo era de o associar aos momentos áureos em que se esgueirava e furtivamente roubava laranjas no quintal da vizinha Cristiana que de alma generosa fechava os olhos aos constantes ataques que vitimavam a aritmética do seu laranjal, e com o andar gingão e sobrolho levantado exibia o espólio de meia dúzia de citrinos aos pirralhos que o seguiam e idolatravam pela coragem e ousadia.
O que não estava nos planos de Zé Gato foi o súbito tremedor que lhe entrou pelas unhas dos pés e se encavalitou sem misericórdia pelo corpo acima. Habituado a façanhas de macho junto das mulheres de vida fácil sentiu-se repentinamente desajeitado sem saber como pôr as mãos nas curvas de Angélica já ofegante pela expectativa das carícias do garboso namorado. Roçou-lhe a masculinidade e sentiu a quentura voluptuosa daquele corpo que lhe oferecia  a virtude sem resistência.  Ainda timidamente em toques de veneração percebeu que amava perdidamente aquela mulher de belos olhos que lhe larapiou o coração. Com o olhar preso no dela inclinou o rosto e beijou-a gentilmente, uma vez, mas já ávido de paixão explorou todos os recantos daquela boca de mel e finalmente explodiu e libertou as mãos da inércia temporária percorrendo todo o corpo de Angélica derretido de amor e magia.
“Ah, grande malandro!  Pensavas que me fintavas?“ Atarantado, ainda sem perceber bem o que lhe estava a acontecer Zé Gato acordou do sonho com uma paulada na cabeça acompanhada dos gritos estridentes de D. Prudência, a querida futura sogra, que tomada de cuidados os seguiu sorrateiramente na missão inabalável de guardiã da honra da família.
 “Puta da velha!!” pensamento que traía o olhar inocente e desculposo que lhe dirigiu. Sempre era melhor prevenir não se desse o caso de tudo dar para o torto e então “adeus curvas!”. Com uma vontade assassina de esganar aquele pescoço flácido e rugoso compôs o semblante  com o ar mais respeitoso e sóbrio possível sentindo o cacarejar do galo que emergia exuberante no alto da sua cabeça.
 “D. Perpétua, vossemecê há-de desculpar o atrevimento, mas eu e a Angélica… bem… nós estamos noivos!”
Tal foi a novidade que até o Zé Gato ficou surpreendido de olhos esbugalhados a olhar para as duas mulheres.
Angélica, sem voz e corada até às orelhas, ajeitava nervosamente ao longo das pernas o vestido amarelo que tão amorosamente tinha costurado para a tão esperada noite do bailarico, estarrecida com o que acabava de ouvir e acontecer, suspensa pelo ar tenebroso da mãe Prudência.
“Noivos? “ pensou D. Prudência  com o cérebro já a mil, afinal o rapazola não era desajeitado, tinha trabalho, nas obras pois bem mas quem sabe não viria a ser mestre e o futuro da sua Angélica estaria garantido.
“Disseste, estamos noivos?” perguntou ainda com um ar carrancudo.
“Bem…eu…” começou Zé Gato a gaguejar, rogando pragas a si próprio pela alhada em que se metera.  
“Mau! És gago?” cortou D. Prudência já preparada para um novo ataque com o ar autoritário que se impunha, olhando para Angélica ainda meio apalermada com os olhos pregados no rosto magro e pálido do seu amado. Repentinamente como quem adivinha a falsa verdade irrompe num choro convulsivo deixando Zé Gato atrapalhado sem saber o que dizer “Estou frito” pensou desgostoso, que amava Angélica era um facto e agora ela esvaía-se em lágrimas como se o mundo estivesse para acabar. Não via necessidade de precipitar as coisas e ainda teria que explicar que a amava mas precisava dar um jeito à vida que já previa ser miserável no entanto ouviu-se a si próprio “ Angélica, queres casar comigo?” Ora, que se lixe, afinal era um homem de coração grande, bem podia acreditar que o amor por Angélica seria suficiente para matar a sede.
Mais tarde por via da desculpa enquanto se enfrascava para esquecer as agruras da vida de cão viria a pensar que foi este episódio traumático que lhe avivou os instintos violentos a juntar a umas quantas surras que o pai lhe distribuía  gratuitamente quando ainda menino resolvia, por conta dos trocados,  desviar uma mísera moedinha para rebuçados ao pecúlio tão ansiosamente aguardado pela garrafa de vinho que o pai despejava com desvelo enquanto lhe dizia as estranhas palavras “quando as curvas se transformam em praça não há remédio melhor que beber uma taça”.
MariaJB

Sem comentários:

Enviar um comentário